Dia 3 - Kikelelwa Camp (3.600m) - Mawenzi Tarn Hut (4.315m)
03-02-2025
Detalhes Técnicos:
Percurso: Kikelelwa Camp - Mawenzi Tarn Hut
Altitude acumulada: 3.600m - 4.315m
Distância: ~6 km
Duração: 3/4 horas
Detalhes da Caminhada:
No briefing da noite anterior, tinham-nos informado que ficaríamos sem rede no telefone até à descida do Kili. Poderia haver momentos com alguma disponibilidade, mas provavelmente seria escassa. Foi útil termos sido avisados com antecedência para podermos informar quem precisasse. A sensação de me desconectar foi libertadora. Foi interessante observar como, ao estarmos todos desconectados, vivemos momentos de maior presença uns com os outros. E, de alguma forma, os dias pareciam maiores.
O dia começou como habitual: vestir, tomar o pequeno-almoço, lavar os dentes, colocar as aquatabs e os isotónicos na água e seguir caminho. A caminhada para o Mawenzi Tarn Hut, o nosso terceiro base camp, teve uma subida ligeiramente inclinada. A chuva parecia estar a fazer as pazes connosco e, aos poucos, foi desaparecendo, dando lugar ao sol. Caminhar com sol torna tudo mais fácil. Senti-me logo mais bem-disposta.
À medida que subia, sentia também a pele da cara mais exposta ao sol e ao frio, ficando cada vez mais seca. Precisava de estar sempre a retocar o hidratante com protetor e o batom para os lábios. Foi uma prática constante ao longo do caminho.
As paisagens foram mudando. A subida tornava evidente a transição entre os diferentes ecossistemas da montanha. Esta montanha brilhante (Kilimanjaro significa “montanha brilhante” em swahili) estava a revelar o seu esplendor. Deixámos a vegetação para trás e, cada vez mais, tínhamos vistas desafogadas. Caminhávamos agora pelas paisagens do “reino da montanha”. E que paisagens lindíssimas!
Durante o percurso, aproveitei para conversar com os guias. Fiquei fascinada com o conhecimento do nosso guia de terreno, o Aderson — não apenas sobre a montanha, o seu ecossistema e a sua cultura, mas também sobre temas gerais. O seu pensamento estruturado impressionou-me. A conversa com ele fez-me refletir sobre inúmeras coisas. Aprendi imenso e levou-me a lugares no pensamento que não esperava.
Dei por mim a pensar nos carregadores e guias que nos acompanhavam. A presença deles era fundamental. O conhecimento que tinham e a forma como liam os sinais da montanha para nos orientar eram incríveis. O modo como estavam em sintonia com a natureza fez-me perceber a ausência dessa ligação no meu quotidiano. Lembrei-me da minha avó, que, ao olhar para o céu no final do dia, conseguia prever a temperatura do dia seguinte. Há algo de fascinante quando vivemos para lá do mental e nos permitimos sentir e observar o que nos rodeia. Esta dança entre interior e exterior fascina-me e faz-me ver o fio que me liga a tudo. Amplia a minha perceção e a forma como interpreto quem sou e o que me rodeia.
Chegámos ao acampamento por volta da hora de almoço. O acampamento em Mawenzi Tarn situa-se junto às torres de Mawenzi. Foi uma sensação única olhar para cima e ver a imponência do pico do Mawenzi a erguer-se sobre nós. O sol estava tão quente que precisámos de abrir a tenda comunitária para evitar o efeito de estufa que se criava no interior.
O almoço soube muito bem e, assim que terminámos, subimos montanha acima para conquistar o nosso primeiro pico, o Mawenzi, um dos três cones vulcânicos que constituem o Kilimanjaro: Kibo, Mawenzi e Shira. O Kibo é o mais conhecido e tem o ponto mais alto, o Uhuru Peak. Supostamente, é o único que ainda pode entrar em erupção, apesar de a probabilidade ser muito baixa. Tanto o Mawenzi como o Shira estão extintos.
Reparei que, em geral, todos os elementos do grupo se preocupavam com a pegada ecológica. Tínhamos sempre o cuidado de deixar o mínimo de resíduos na natureza com a nossa passagem. Dei por mim a refletir sobre a quantidade de lixo que produzo no dia a dia. O Kili estava a despertar em mim uma maior consciência sobre a conservação da natureza. É um monte tão bonito. Seria uma pena se o turismo o estragasse com resíduos.
Durante a tarde, subimos até ao cume do Mawenzi para aclimatizar. O objetivo era subir mais alto e depois descer para dormir mais baixo — uma técnica usada para ajudar o corpo a adaptar-se à altitude. A subida trouxe consigo uma mudança repentina de temperatura (sempre imprevisível) e acabámos por não ter a vista prometida. Ainda assim, foi um momento especial. Aproveitámos para tirar fotografias e, de certa forma, foi um instante prazeroso. Ali estávamos todos juntos a conquistar o primeiro pico do Kilimanjaro.
Ao longo desta caminhada, tive conversas inesperadas. Mas, ao mesmo tempo, percebi o quanto estava a deixar cair as minhas barreiras e a permitir-me ser eu. Quando deixamos cair as nossas barreiras, acabamos inevitavelmente por atrair para a nossa envolvência pessoas que nos acrescentam imenso ao nosso mundo. No meio das partilhas, descobri tantas respostas. E foi o facto de estar presente e disponível que tornou isso possível.
No regresso ao acampamento, jantámos e, mais uma vez, ficámos à mesa, envolvidos em conversas que me fizeram abrir a mente e conhecer melhor as pessoas com quem estava a partilhar esta viagem incrível. Como habitual, o jantar foi mais um momento de partilha único, que nos ajudou a manter a boa disposição e a energia.
Dormimos aos pés do Mawenzi. Mais uma vez, tivemos um céu estrelado. Esta foi a noite mais fria de toda a viagem. Apesar de estarmos num vale, a temperatura era gelada. Dormi com camadas sobre camadas de roupa e, mesmo assim, continuei a tremer de frio. Dentro da tenda, o efeito de condensação também não ajudava, e o saco de cama ficava com uma espécie de humidade à superfície.
A noite aos pés do Mawenzi foi, sem dúvida, um teste à resistência ao frio. O que me salvou foram as películas térmicas para os pés. No entanto, percebi que as estava a usar mal. O ideal seria colocá-las entre as meias, mas, com o frio, apliquei-as diretamente na pele. Ainda me ri! E ao usá-las corretamente, realmente ajudaram a preservar o calor nos pés. Nesta noite, dormi com a cabeça dentro do saco de cama. Foi a única forma de conservar o calor.
Reflexão:
Vivemos num mundo onde estamos constantemente ligados. A ausência de rede permitiu-me uma presença mais plena. Silenciou o ruído e ajudou-me a recentrar-me. De repente, tomei consciência da experiência incrível que estava a viver. Tudo ganhou uma dimensão diferente. O meu foco passou a ser apenas eu, a montanha e as pessoas à minha volta. Parece que, ao desconectar do telemóvel, conectei-me mais profundamente com os outros e comigo própria. Fez-me pensar em quantas experiências perco no dia a dia por estar tão distraída com o digital.
À medida que fui subindo, senti-me cada vez mais conectada com a natureza. E quanto mais me conectava, mais os meus sentidos se apuravam. As minhas barreiras foram caindo e percebi que a minha disponibilidade para os outros aumentava. Dei por mim a ter conversas que jamais imaginei ter e a sentir-me feliz por, sem medo, partilhar o que sentia e os receios que trazia comigo. Às vezes reprimimos pensamentos que, quando partilhados, perdem intensidade e tornam-se mais digeríveis. O simples ato de verbalizar tira força ao monstro que vive na nossa cabeça. E é curioso observar as diferentes estratégias que cada um encontra para lidar com os pensamentos que o ocupam.
Ao observar de forma consciente o meu interior e exterior, e a dinâmica entre ambos, fiquei a pensar: será que, no dia a dia, presto atenção suficiente ao que me rodeia e ao impacto que isso tem em mim?
Esta caminhada fez-me refletir sobre a falta de literacia que tenho em relação à natureza. A minha desconexão, fruto do meu estilo de vida, faz-me sentir estranha quando me vejo inserida nela. Senti nascer em mim a vontade de me saber orientar, de interpretar os sinais da natureza e de estar mais conectada com ela. Achei interessante quando uma colega partilhou que costuma fazer provas de trail onde precisa de se orientar através de um mapa, pois o percurso não está sinalizado. Fiquei com a "pulga atrás da orelha" para experimentar. Gostava mesmo de aprofundar essa ligação.
A preservação da natureza e a redução da minha pegada ecológica também ocuparam os meus pensamentos. Como posso, no meu dia a dia, viver de forma mais simples e reduzir o meu impacto ambiental? O Cliché do “minimalismo” ecoou na minha mente.
As conversas improváveis que fui tendo na montanha fizeram-me perceber o impacto de deixar cair as barreiras. A vulnerabilidade é essencial para criar ligações genuínas. Ao permitir-me ser eu mesma, atraí pessoas que me acrescentaram imenso. Quantas vezes nos protegemos demasiado e, com isso, impedimos conexões verdadeiras?
Por fim, a cada desconforto da montanha, dei por mim a ter flexibilidade e adaptar-me. O desconforto tornou-se, a cada momento, um professor que, através da prática, me ensinava lições extremamente valiosas.
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1ª Ed. Peak Performance Leadership: The Kilimanjaro Challenge - Nova SBE
Papa Léguas & Zara Adventures